terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Vik Muniz e Beatriz Milhazes

Vik Muniz lança 'catálogo raisonné' e fala com Beatriz Milhazes sobre 'revisionismo'

Vik Muniz é o primeiro artista brasileiro contemporâneo a ter o registro integral de sua produção artística lançado em livro, o chamado "catálogo raisonné". O lançamento, da editora Capivara, é amanhã no Rio e quinta em São Paulo. Organizado por Pedro Corrêa do Lago, o belo volume tem 710 páginas e 1.600 imagens que ilustram cronologicamente as 1.200 obras criadas pelo artista paulista desde o início de sua carreira, há 22 anos. Para conversar com Vik sobre este seu momento de revisionismo (seria precoce para um artista tão jovem?), convidamos Beatriz Milhazes, outro nome do País com incrível projeção internacional e com obras igualmente valorizadas no mercado mundial de arte. A seguir, o papo de Vik e Bia, exclusivo para o Estado.

Beatriz Milhazes: Fomos nos encontrar só no contexto internacional, não é Vik? Não o conhecia antes, só quando comecei a expor em NY, quando iniciei carreira internacional.

Vik Muniz: Quando comecei a mostrar minha obra no Brasil, você começou lá fora. Ou seja, nossas carreiras são inversas.

Beatriz: Isso. Começamos a trocar figurinhas no início dos anos 90.

Vik: Isso vai dar bandeira da nossa idade... (Risos) Por uma questão de contexto, nossos trabalhos só se encontraram em exposições temáticas, do tipo "artistas brasileiros". Fora isso, nunca.

Beatriz: O que tínhamos em comum era o Marcantonio (Villaça, marchand e galerista pernambucano, morto em 2000). Ele era diferente do que havia então no mercado, abriu as portas internacionais para artistas brasileiros. Viemos de várias pontas e nos cruzamos ali, através do Marcantonio.

Vik: Ele era diferente de todos os outros. Ligava dia sim, dia não, era nosso amigo. Galeria normalmente pensa na parte comercial. Ele curtia ter uma relação com o artista, fora da parte comercial. Artista tem ego grande, então ele promovia uma certa competição entre nós. Provocava, falava: "Bia está com uma exposição em tal lugar..."

Beatriz: É verdade. Ele queria saber o que você estava fazendo, acompanhava. Os rumos mudaram muito depois da morte dele. Já vai fazer 10 anos, meu Deus! Mas, Vik, sobre o seu catálogo raisonné, como se sentiu fazendo isso?

Vik: Chega um nível em nossa carreira em que temos de gerenciar tudo o que foi feito. Deixamos um rastro de obra. A ideia de fazer o catálogo é ter de domar esse monstro, o trabalho que você deixou, o legado... Você começa a se dar conta da amnésia em relação a seu próprio trabalho. Tive de pesquisar trabalhos de 20 anos atrás, coisas que nem lembrava ter feito.

Beatriz: Eu estou preparando a mesma coisa para um livro e fui bater em coisas que fiz no Parque Lage, mas não são importantes, sei lá...

Vik: Antes eu sempre desenhava, desde pequeno, fazia escultura, mas não me considerava artista. Eu me considerava um desenhista, um fazedor de coisas. O catálogo raisonné do Picasso tem desenhos de criança, são dezenas de volumes. Mas só me considero artista a partir do momento em que aluguei um estúdio, em 1987, e resolvi viver de arte. Ainda estava experimentando muito.

Beatriz: Quando você começa a revisar a sua obra, isso é o que mais mexe. É curioso, porque agora você vai ter de criar uma "escritura" para o que fez de forma espontânea...

Vik: Você passa muito tempo tentando desenvolver uma linguagem, criando uma via de acesso para o público identificar o seu trabalho. Uma vez que você estabelece essa linguagem, quando você descobre, você tem a noção de que as pessoas te conhecem. Mas ao revisar seu trabalho, é interessante descobrir que podia ter percorrido determinados caminhos e não percorreu.

Beatriz: Eu tenho um período do meu trabalho em que eu simplesmente joguei fora quase tudo que eu fiz, porque não entendia, não gostava. Eu falei: "Não tenho condição de conviver com nada disso." Agora, nesse período em que comecei a "revisionar", e isso tem um ano, foi quando comecei a entender o período.

Vik: Mas já tinha jogado fora...

Beatriz: Já, mas não me arrependo. Engraçado, eu achei que viria um arrependimento, mas não veio. Na verdade, tive, mas só por algumas poucas obras. O engraçado mesmo é começar a entender aquela fase.

Vik: Nesse meu livro tem coisa de que eu não gosto também.

Beatriz: Por isso deve ser melhor fazerem o catálogo depois que a gente morre, né? (Risos)

Vik: Você começa uma carreira e vai dando tiro para tudo quanto é lado, às vezes você mata um pombo. Você pensa em duas razões: algo que lhe satisfaça intelectualmente e outra que satisfaça o público. Esse feedback, essa cobrança, é muito importante. Como estamos viajando o tempo todo, é difícil ter tempo de parar e pensar no que fez. O livro o coloca em uma posição privilegiada, você vê as ramificações do que foi feito por você. Mas é perigoso, porque você se envolve muito consigo mesmo. Eu fui voltando, fui voltando... daí torna-se inevitável para um artista dialogar com o próprio passado.

Beatriz: Eu ia perguntar isso. Se vendo sua obra como um todo, você começaria a dialogar com o passado.

Vik: É natural. Na minha idade, no lugar em que estou, faço isso de uma forma ou de outra. Não tenho esse luxo de parar e pensar na vida. Estamos sempre correndo. O livro me forçou a pensar em tudo. Tenho uma responsabilidade técnica mesmo, de colocar uma coisa atrás da outra.

Beatriz: Como foi fazer um catálogo raisonné tão jovem? Penso que nós vivemos uma situação interessante. O nosso papel é inédito, os preços, a localização, as coleções, isso é inédito no contexto de arte brasileira. Isso está colocando a gente em situações que outros não tiveram. Penso em Lygia Clark na nossa idade, que não estava nem perto desta posição... Você tem de lidar com situações que outras gerações brasileiras não teriam de lidar.

Vik: Penso que daqui a 20 anos esse livro só deverá existir no formato digital. O conteúdo, a distribuição, esta organização tem a ver com uma necessidade. Tanto eu como você, Bia, temos de fazer isso e por motivos diferentes. Você lida com a pintura, que produz objetos únicos, por isso catalogar também é tão importante. Saber quem comprou seu trabalho e onde ele foi parar, pois se fizer uma exposição retrospectiva, vai ter de rastrear cada obra. No caso da foto, não é tão sério, posso imprimir tudo e fazer a exposição. E eu trabalho em série. Vou aplicando os conhecimentos dentro da série. É como escrever novela, vou matando alguns personagens, fazendo uma intriga aqui, outra ali.

Beatriz: Você tem arquivo digital...

Vik: O arquivo digital está lá. Mas isso aqui (aponta o livro) é baseado em uma cronologia. É engraçado, pois você visualiza tudo.

Beatriz: O digital está lá, mas o livro tem outro contexto, não é?

Vik: O trabalho em série produz um número maior de objetos, inevitavelmente. Eu poderia estar fazendo coisas maiores, colocar mais conteúdo, mas tenho dificuldade com isso. Procuro dissipar isso em pequenos objetos, a natureza do meu trabalho produz um número muito grande de objetos. Na pintura, você aplica o conhecimento na própria pintura. Fotografia determina pontos, é uma extensão maior.

Beatriz: Ainda estou curiosa. Na hora de fazer a cronologia, você não fez uma seleção/pré-curadoria?

Vik: Não fiz. Mas o que não está aqui foram as coisas que se perderam. O artista quando jovem está preocupado em fazer o trabalho, não se preocupa em documentar. A gente está muito envolvido com a criação e coisas se perdem ao longo do caminho. É preocupante essa amnésia em relação ao seu próprio trabalho. Em 20 anos, você esquece de muita coisa. Penso agora que foram semanas da minha vida dedicadas a algo que perdi na memória. Gastei dinheiro, peguei trem e não tenho mais a menor lembrança daquilo.



Renato Rosa
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colaboração de Carla Volkart

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