terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

PILLA E O CARNAVAL

Confiram abaixo artigo do recentemente falecido político e intelectual Luis Pilla Vares sobre o carnaval, complementar à matéria do Caderno Cultura:

PILLA E O CARNAVAL (em fevereiro de 1988)

O carnaval é indiscutivelmente a maior festa do povo brasileiro. Mesmo que suas origens sejam ainda discutíveis, é certo que foi assumida pelo povo pobre, recebendo cada vez mais a influência marcadamente negra pelo ritmo musical, pelo gingado da dança e, logo pelo samba que acabou sendo a influência decisiva no surgimento da única arte autenticamente brasileira: o desfile das escolas de samba.

Não é meu propósito discorrer aqui sobre as origens das escolas de samba, o que fiz por mais de uma vez em outras ocasiões. Tentarei fixar-me no que o samba trouxe de novo à arte popular, mesmo que este novo não seja percebido conscientemente por seus criadores, o que, aliás, é fato comum no processo de criação artística: nem sempre os artistas têm consciência nítida do que estão produzindo e raramente calculam a influência que sua criação exercerá sobre a arte de seu tempo.

Já se pode perceber, portanto, que trato o Samba e mais especificamente o samba das escolas os desfiles de carnaval _ como um fenômeno estético. Não examino aqui a folia propriamente dita, ainda que a reconheça como um elemento fundamental para que a escola de samba se expresse como tal. Portanto, não é o Carnaval que me preocupa neste artigo, mas uma de suas formas particulares: a escola de samba. E analiso a escola de samba como um gênero artístico, capaz de rivalizar com as outras grandes manifestações estéticas . Vejo acima de tudo a escola de samba como arte moderna, como uma das mais autênticas expressões da contemporaneidade. Por sua linguagem, por sua música, pela dança e pela coreografia que apresenta, a escola de samba pode ser vista como um modelo de arte nova, capaz de expressar em seu movimento sempre surpreendente as mais autênticas tradições populares revestidas de uma forma em que se pode perceber nitidamente todos os estilos da arte contemporânea em estado bruto, onde o primitivismo coabita com a mais cativante e revolucionária modernidade.

Certamente a escola de samba, antes um fenômeno artístico nitidamente regional, expressão mais autêntica do sambista carioca, graças à evolução tecnológica dos meios de comunicação _ a tv foi um fator decisivo para isso _ ultrapassou as fronteiras do Rio de Janeiro e hoje sem dúvida alguma adquiriu as dimensões gigantescas de um grande espetáculo nacional, onde _ para bem ou para mal _ não se pode afirmar que a antiga e espontânea folia seja o seu requisito essencial. Atualmente, o telespectador sentado comodamente em sua poltrona ou o público apertado nas arquibancadas do sambódromo assume mais ou menos a postura de alguém diante de um teatro, ou um concerto ou de uma ópera do que o descompromisso e a participação corporal inerente ao folião dos velhos carnavais brasileiros.

Discute-se se isto foi positivo ou negativo e há uma multidão de tradicionalistas que encara este processo como uma brutal negação das raízes do samba. Mas nada há que fique sempre igual a si mesmo. E se assim ocorre na vida, também acontece no universo artístico, onde a mudança e a busca da modernidade em muitos casos a própria essência do processo criativo. Seria ingenuidade ou má fé pensar-se numa arte popular confinada a si própria, sem se nutrir das mudanças _ em alguns casos revolucionárias _ que ocorrem na sociedade da qual é a expressão mais legítima, ou nas outras artes de que não pode se isolar. Aliás, o próprio samba surgiu como uma revolução musical. Ou vamos negar que o velho Donga rompeu com toda uma série de padrões estabelecidos? Ou vamos negar que Noel Rosa trouxe para a música uma nova forma de crônica do quotidiano urbano do Rio de Janeiro?

Assim, a escola de samba em seus moldes atuais traz para o universo artístico uma multidão de espectadores, um novo público de especialistas que já se familiarizou com a linguagem específica desvendada durante os desfiles. Ao contrário, porém da passividade característica das salas fechadas, o público das escolas de samba é ativo e contagia o próprio desempenho das mesmas, provocando uma interação desconhecida dos espetáculos tradicionais como o teatro e a ópera (não me refiro aqui ao teatro grego, onde havia uma participação quase semelhante, nem à comédia del’arte e nem ao teatro brechtiano, que exige do seu espectador um nível de participação elevado, embora apenas ao nível da razão, extremamente cerebral e “frio”: refiro-me essencialmente ao teatro burguês e à ópera).

Mas se o desfile das escolas de samba forma um novo tipo de público consumidor, é inegável também que traz para o universo da arte igualmente um novo tipo de astro, que é o homem do povo, o anônimo de todo o ano que se transfigura em bailarino, cantor, músico ou compositor. E isto é instigante e provocador!

Quem já viu um grande desfile, não pode deixar de se admirar da graça aristocrática de uma porta-bandeira e dos passos elegantes e contidos de um verdadeiro mestre-sala; ou da sensualidade e da capacidade de improvisação dos passistas; ou da harmonia e do ritmo _ a que ninguém fica imune _ das baterias consagradas, como, por exemplo, a da Mocidade Independente de Padre Miguel ou a da Portela, aqui mesmo no Rio Grande do Sul, as baterias dos Bambas da Orgia e dos Imperadores do Samba já romperam com a “batida marcial” do samba gaúcho e executam um ritmo gracioso e surpreendentes, verdadeiras orquestras de trabalhadores, a maioria dos quais nunca viu sequer uma partitura em toda a sua vida.

Estes novos astros que executam sua arte diante de um novo público em um novo tipo de “palco” _ as amplas avenidas urbanas _ na verdade estão com uma linguagem artística já plenamente elaborada, o que não quer dizer em absoluto que se tenha definitivamente estagnado. O que ocorre é que o espetáculo de escolas de samba já possui as suas próprias estruturas, em uma conjugação notável do canto e da dança (que é a matéria-prima fundamental, “a infra-estrutura” da escola de samba enquanto forma de arte), com as artes plásticas (as alegorias vêm ocupando um lugar cada vez maior nos desfiles) e com a ópera o enredo ainda possui uma importância decisiva). Nessa medida, o samba das escolas aproxima-se aceleradamente da sonhada arte total. Pelo menos, até agora apenas o desfile das escolas de samba chegou perto desta perspectiva.

O mundo onírico é essencial para um bom desempenho de uma escola na avenida. Mesmo com os velhos enredos, que se caracterizavam por sua estrutura clássica e pela linearidade, a forma com que eles eram “contados” na passarela da avenida desestruturava o “realismo” inerente à história e à letra do samba para adquirir a imaginação sem limites do sonho. A caracterização das personagens, a dança, os passos improvisados, o som da bateria e o surrealismo primitivo das alegorias transformavam o enredo em uma alucinada passagem ao mundo da imaginação, das associações livres e dos símbolos oníricos. Obviamente, esta situação escrita “o asfalto teria repercussões imediatas na estruturação do enredo e do samba que, a partir do fim da década de 60 e início da de 70, assimilaria a forma anárquica, na qual as palavras se incorporavam ao ritmo ou chegavam mesmo a se tornar puramente sons indisfarçavelmente afro. Sons pura a simplicidade que passavam a ter mais significação do que as próprias palavras consagradas que davam revolução a geira, censura imposta não podem ser negligenciadas neste abandono da perspectiva crítica e da sátira que sempre estiveram presentes no samba e na introdução do refrão fácil de puros sons. A retomada do espírito satírico, porém, ressurgiu, tornando-se dominante nos quatro últimos anos. De qualquer forma, parece definitivamente encerrada a era dos longos sambas-enredos de conteúdo ufanista e muitas vezes ingênuo (mas não é possível omitir o fato de que verdadeiras obras-primas foram criadas naquele período, como o Mundo Encantado de Monteiro Lobato, Tiradentes e tantos outros). O espírito crítico dos últimos anos, penso eu, é uma espécie de transição, superando-se o samba anárquico inaugurado pelo Salgueiro, mas sem que se chegue a uma nova etapa plenamente consolidada. Os sambas deste ano, por exemplo, incorporam a sátira a uma retomada do tema histórico, como a Abolição da Escravatura em muitos deles. No entanto, creio que a evolução da Mangueira dentro da tradição clássica tem a chave para um samba no qual a sátira não se perca, mas nem tampouco a dimensão literária e “operística” incrustadas em enredos belíssimos como o da homenagem a Drummond e “Yes, nós temos Braguinha” de anos recentes.

Bem, isto é o samba das grandes escolas. Em torno dele e delas é possível uma reflexão que certamente destoa do descompromisso carnavalesco tão comum nestes dias. Mas mesmo sendo o carnaval o momento das escolas, não se pode deixar de colocar em relevo esta apaixonante forma de arte que o povo _ e aqui trata-se verdadeiramente do povo, este segmento deserdado da sociedade, atribulado e angustiado durante quase todos os dias do ano _ vem aperfeiçoando com notável imaginação e criatividade. Vale a pena postar-se diante da tv e sentir o prazer da arte, aquele prazer puro, como uma iguaria, que temos ????por exemplo, ou de uma sinfonia de Beethoven, ou de uma ópera de Verdi. Ou de um quadro de Salvador Dali. Arte pura.

Durante muitos anos usei a expressão “ópera do Terceiro Mundo” para caracterizar este fenômeno estético das escolas de samba grandiosas que desfilam no Rio de Janeiro. Hoje creio que a expressão é inadequada. Não incorreta: inadequada. De fato, trata-se de uma manifestação típica do Terceiro Mundo e tem todos os ingredientes das óperas transformados e transportos para serem interpretados e consumidos nos espaços abertos das avenidas. Por outro lado, o seu conteúdo essencialmente popular, sem assimilar as conquistas da tecnologia moderna, torna o desfile da escola de samba uma manifestação estética típica do Terceiro Mundo, o que ainda se torna mais evidente quando a temática dominante nos enredos trata de um problema tão presente em países como o nosso, que é o da exploração da mão-de-obra escrava, como ocorre neste ano, centenário da Abolição, o que nos aproxima física e espiritualmente da África e, da mesma forma, nos afasta do colonialismo. E Terceiro Mundo não apenas pela temática, que muitas vezes transcende a questão da negritude para levar à Avenida, por exemplo a literatura de Carlos Drumond de Andrade ou o cinema de Charles Chaplin, mas pelo ritmo, pelos personagens, pelos intérpretes. Quem não observa logo nas belíssimas alas de baianas o resgate da dignidade de uma raça? E na elegância do mestre-sala e da porta-bandeira, vestidos sempre e inevitavelmente como as classes dirigentes da era colonial, não está manifesto o desejo dos deserdados _ os escravos _ em ascender ao mundo “limpo” da arte e da elegância desfrutado apenas pelos privilegiados da corte, longe da senzala?

Com todo esse universo rico, com sua linguagem própria e específica, com seus símbolos cheios de significado, definitivamente parece-me que o termo “ópera” fica demasiado estreito para nos referirmos às escolas de samba. Estas já adquiriram plena autonomia estética e não precisam se socorrer de nenhum termo de outras artes para designarem-se a si mesmas. Souberam usar o canto, a música, o balê, o teatro, a literatura, as artes plásticas e a própria ópera, mas seus elementos foram transformados e sintetizados em uma outra unidade, diferente de qualquer outra forma de expressão artística.

Por isso mesmo, não se pode pensar que a escola de samba venha a ser uma simples justaposição de elementos de outras artes. A originalidade começa por se tratar de uma arte de multidões, capaz de reunir um público até aqui só alcançado nas grandes competições esportivas. E este público, tanto o espectador passivo como o ativo, não vem ao caso, coloca-se diante de uma ruptura total com os padrões clássicos da arte ocidental, e, em primeiro lugar, com a sua linearidade (antes, porém, deixemos claro que esta ruptura dá-se no sentido hegeliano da superação _ superar conservando. Inclusive alguns enredos da época heróica das escolas de samba podem, do ponto de vista da trama ou da “historia”, ter sido claramente influenciados pelos poemas homéricos _ a Ilíada e a Odisséia _ ou Virgílio e sua Eneida). Estes enredos, porém, mesmo os mais clássicos, são desdramatizados no desfile e será a forma, carregada de símbolos e de significados que permitirá um novo tipo de leitura ou de descoberta da proposta da escola em relação a sua temática.

Entretanto, seja qual for o enredo, seja a temática que for apresentada, clássica ou anárquica, as escolas de samba conseguem realizar o mágico encontro do primitivo com o moderno, numa tensão permanente, que resulta em horas seguidas de encantamento.
"Há pessoas que transformam o sol numa simples mancha amarela, mas há também aquelas que fazem de uma simples mancha amarela o próprio sol."
Pablo Picasso

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*Contribuição de Carla Volkart

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