Em resposta a Voltaire Schilling...
31 de outubro de 2009
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Arte pública como plataforma
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Doutor em História da Arte chama de demagógico o artigo que propunha“ação entre amigos” para “despachar” obras de arte
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O artigo do historiador Voltaire Schilling A Cidade dasMonstruosidades (ZH, 25/09/2009) tem lá o seu grau de aberração.
Não é novidade que obras de arte em espaço público desagradem a certas parcelas da população. Sociedades democráticas, entretanto, não propõem sua destruição, pois isso seria uma atitude fascista, que na mesma moeda de troca sugere uma providência autoritária sobre tudo o que lhes “desagrada”.
Ao contrário, privilegia-se o respeito à expressão, que é o fundamento básico de democracia.
Há uma grande dose de demagogia em qualquer “manifesto” que busque levantar as massas contra a arte, porque pressupõe um exercício demagógico do livre-arbítrio.
Não se trata do exercício crítico, porque a crítica procura, antes de tudo, o esclarecimento.
O professor Schilling cita o artista Marcel Duchamp como o precursor do que ele chama de uma “Caixa de Pandora dos horrores estéticos”, mas as transgressões artísticas de um dos mais brilhantes artistas do século 20 abriram o universo do pensamento reflexivo sobre a arte, que antes era limitado à contemplação passiva.
Ironicamente, é nas raízes da atitude de Duchamp, ao questionar o status do objeto artístico, que encontramos hoje a liberdade de expressar uma opinião sobre esta ou aquela obra e questionar seus pressupostos. Mas o que pensar de alguém que invoca o direito de crítica conclamando à condenação aqueles que supostamente fabricam a “feiura” que não lhes agrada?
É direito de todo cidadão exercer sua opinião, porém manifestos iconoclastas subjugam a vontade e o livre-arbítrio, pois buscam apenas contabilizar o ressentimento de alguns. “Dei a voz ao que a maioria pensa”, justifica o historiador, como se soubesse de fato que vontade é essa, causando (propositadamente) uma grande confusão entre categorias artísticas. É sabido, contudo, que a demagogia nunca busca a clareza, uma vez que privilegia a retórica.
O Monumento ao Presidente Castello Branco, de Carlos Tenius, localizado no Parcão, é uma obra que tem uma escala pública digna da imposição dos regimes autoritários, razão pela qual tem muito a nos ensinar. Sua forma estilizada, em linhas verticais dinâmicas, é de indiscutível interesse estético e talvez seja até irônico pensar em como ela pode ser contextualizada no universo contemporâneo, já que de fato elas lembram, em muito, figuras familiares ao cotidiano político que não devem ser esquecidas.
Estrela Guia II, do artista Gustavo Nakle, que substituiu a obra que Schilling menciona ter sido destruída pelos “vileiros do Morro Santa Tereza”, tinha sua primeira versão em bronze e foi roubada (como inúmeras outras obras na cidade) pelo valor de comércio do material de que era feita, e não destruída pela comunidade como diz o historiador. A obra foi escolhida por concurso público dentro do projeto Espaço Urbano Espaço Arte da prefeitura dePorto Alegre. Vale lembrar que nosso artista Xico Stockinger, citado pelo autor, participou inclusive dessa comissão, formada em sua maioria por membros da comunidade artística. A obra Super cuia, do artista gaúcho Saint-Clair Cemin, doada pela 4ª Bienal do Mercosul, é uma obra surpreendente por ter atribuído um caráter pop a um símbolo regional como a cuia, através do formato de um dodecaedro. Olhos Atentos, de José Resende, não é uma doação, mas uma obra comissionada pela 5ª Bienal. Voltada para o Guaíba, como um mirante, ela já faz parte do imaginário da cidade. O Monumento aos Mortos do Regime Militar, de Luiz Gonzaga, foi escolhido em concorrência pública por uma comissão em 1994, resultado de um projeto de lei, tendo grande receptividade por parte das famílias atingidas pela ditadura. Uma forma abstrata que, com seus espaços entrecortados, representa plenamente os limites entre a opressão do ferro e a liberdade do azul do céu. Finalmente, Tapume, de Henrique Oliveira, é uma obra temporária da 7ª Bienal do Mercosul e, em sua qualidade artística, como tal, deve ser pensada. Por fim, não é possível deixar de notar as referências subliminares do professor Schilling ao corpo, por meio do uso de termos como “cuiódromo”, “vaca premiada” e “tarugo”, de conotação notadamente sexual. O raciocínio culmina na apologia à beleza das porto-alegrenses, que ele chama de as “mulheres mais belas do país”, uma atitude não só machista e estereotípica, mas que também privilegia um padrão de beleza em relação às mulheres de outros estados. A conclusão parece ser a de que as obras de arte públicas deveriam ser tão belas quanto as mulheres gaúchas – afinal, tudo seriam coisas – e nós, porto-alegrenses, gostamos de coisas “modernas” e belas, ao menos nas palavras do historiador.
Um argumento quase irrefutável.
* Mestre em Arte pela New York University (NYU) e doutor em História da Arte pela State University of New York (SUNY)
GAUDÊNCIO FIDELIS
quarta-feira, 4 de novembro de 2009
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Um comentário:
Legal essa colheita de idéias, Clau. É um perfeito início de debate.
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