Um amor para recordar
"Carta a D." é uma elegia do filósofo André Gorz para a mulher com quem viveu 50 anos
Histórias de amor com algo de fatalidade estão sempre no limite incômodo entre a emoção e a hiperglicemia. É, portanto, surpreendente quando aparece um ensaio conciso, seco, honesto no limite do brutal e que é, antes de tudo, uma dilacerante carta de amor.
É o caso de Carta a D. (Annablume/Cosac Naify, 80 páginas, R$ 22,80), um relato do filósofo francês André Gorz escrito para sua esposa, a inglesa Dorine Keir, já no fim da vida do casal, ambos intelectuais militantes de esquerda.
Pouco conhecido no Brasil, Gorz (austríaco de nascimento cujo nome original era Gerhard Hirsch) foi um dos grandes pensadores europeus de esquerda no século 20. Amigo de Jean-Paul Sartre e de Simone de Beauvoir, foi um dos fundadores da revista Le Nouvel Observateur e diretor da publicação Les Temps Modernes, fundada por Sartre em 1944. Publicou dezenas de livros sobre a questão social e as relações de trabalho no capitalismo e foi um pioneiro da causa ambiental.
Carta a D., best-seller imediato na França em 2005, foi sua última obra. O livro é, ao mesmo tempo, uma reflexão lúcida e descarnada sobre o valor do amor e um balanço final da vida de seu autor, o que inclui, forçosamente e em primeiro lugar, o casamento de mais de meio século que teve com a inglesa Dorine. É ela a D. a quem a "carta" se dirige, em um texto no qual o racional ex-marxista reconhece que sua formação intelectual muitas vezes impediu-o de assumir uma postura mais emocional ao analisar os sentimentos transbordantes que nutria pela esposa.
D. não foi apenas a mulher com quem Gorz passou a vida, foi aquela com quem ele escolheu terminá-la. Em setembro do ano passado, o casal, então já com mais de 80 anos, se suicidou. Ela sofria de uma grave doença degenerativa provocada por uma substância de contraste para Raio X que não foi eliminada pelo organismo. Ao testemunhar os anos de batalha da mulher com a dor, Gorz já sinalizava na Carta a D. a atitude que o casal tomaria: "Nós desejaríamos não sobreviver um à morte do outro. Dissemo-nos sempre, por impossível que seja, que, se tivéssemos uma segunda vida, iríamos querer passá-la juntos".
A Carta a D. de André Gorz é um testemunho que vem se juntar a um tipo peculiar recente de livros de memórias e depoimentos. Textos que buscam, por meio de narrativas de uma qualidade literária mais trabalhada, fazer uma arqueologia dos afetos revirando escombros da memória (leia abaixo). Uma linhagem que remonta ao best-seller de 2005 O Ano do Pensamento Mágico, de Joan Didion, publicado em 2006. Textos que, como Carta a D., em vez de simplesmente narrar suas memórias, refletem sobre o próprio processo que as cristalizou.
A Encomenda
A americana A.M. Homes, aclamada como uma das mais perturbadoras revelações literárias em língua inglesa com o romance O Fim de Alice, no qual narrava uma história pelo ponto de vista de um pedófilo, reconta a experiência traumática de se descobrir adotada pela família que sempre pensou ser sua. A história vem à tona depois que a mãe biológica, que a vendeu na infância, retorna para restabelecer contato já com Homes tornada escritora famosa. Com honestidade brutal e a ironia ácida que haviam celebrizado sua prosa, Homes revisita suas tentativas titubeantes de restabelecer contato com a mãe desequilibrada e com o pai reticente, que quer conhecê-la mas insiste em manter sua esposa e seus outros filhos sem saber da existência dessa filha. Um mergulho emocional nas trevas. Nova Fronteira, 222 páginas, R$ 29,90.
Sobre Alice
Durante anos, o jornalista Calvin Trillin calcou muitos de seus textos para a New Yorker na rotina familiar que vivia em companhia da esposa, Alice, e de seus filhos. Trillin é especialista em um certo tipo de texto jornalístico muito popular nos Estados Unidos, o relato do cotidiano com um viés centrado principalmente no humor, algo aparentado com a nossa crônica de imprensa mas com menos lirismo e mais espírito. Muitos desses textos tinham por protagonista a Alice que é tema e título deste último livro escrito pelo jornalista sobre a esposa, também escritora e educadora. Usando o mesmo humor que sempre exercitou em suas crônicas, ele dá voz à saudade da mulher, morta após 36 anos de vida em comum, vencida por um câncer. Trillin faz a elegia de sua musa com auto-ironia e graça que evitam a pieguice. Editora Globo, 96 páginas, R$ 17.
fonte: Zero Hora
quarta-feira, 19 de março de 2008
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